domingo, março 30, 2008

Visão

O ano é 1.982.
Todas as manhãs, o menino dá trabalho para sair da cama. Tem sono pesado de quem esteve sonhando muito alto, ou talvez porque tenha ficado até tarde da noite no quarto simples, imerso nos livros de Agatha Christie com a velha Miss Marple, Monteiro Lobato com as repetidas aventuras de Emília e sua turma, algumas novidades como ET o Extra-Terrestre, muitos outros contos e obras completas que todos seus colegas de escola não conseguiam ler, porque ainda não tinham a capacidade para isso, e nem a bibliotecária permitia a eles que levassem livros mais avançados, mas o menino já tinha provado seu valor e a tutora daquelas milhares de obras, permitia a ele que se deleitasse com responsabilidade. A leitura era sua companheira diária que incitava o garoto ao vício, vicio do hábito de ler, de usar a imaginação, de se enfronhar nos livros e avançar madrugada adentro todas as noites para em seguida desabar em sono pesado com sonhos coloridos e mitológicos,  na manhã seguinte dar trabalho novamente para sair da cama.
A mãe briga todas as manhãs entre gritos e puxadas de cobertor para que um ser descabelado surja das profundezas da cama, com a cara inchada e amarrada destilando um mau humor quase profano. Ainda em estado de transe sonífero, toma café da manhã sem sentir o sabor nem saber o que está comendo, pega os materiais da escola e sai pelo portão baixo e velho de ferro fundido, praticamente um dos primeiros habitantes daquela casa. Primeiros passos na manhã fria sob a luz de um sol que ainda não surgiu por completo no horizonte e, ao chegar na esquina, volta-se para olhar a casa, pois ele sabe que alguém espera por ele alí no velho portão de ferro fundido para dar um ultimo momento. Lá está a mãe, na sua rotina carinhosa de todos os dias, de se despedir do filho através desse simples gesto, de um aceno de mão, desejando em fração de segundos, e à distância, que seu dia seja gloriosamente bom. O menino vê uma mão que acena e retribui, e continua sua rota no piloto automático como se nada tivesse acontecido, apenas pensando no longo período de aulas que estava por começar dentro de minutos. O mecanismo de despedida se repete por dias, semanas, anos a fio.
O menino cresceu e a mãe envelheceu. Para ele, a mãe continuava a mesma de sempre, agora um pouco menor e debilitada pelo avanço das doenças características do avanço da idade. Ele deixou a casa, mudou-se para a cidade grande para seguir sua trajetória profissional, apesar das insistentes reclamações dela, mas então com a maturidade, ele compreendeu a profundidade do gesto do simples sinal de adeus. Como um elo de amor e carinho que era diariamente refeito por uma mãe distância. O menino, agora um homem crescido, continuou a receber os acenos, só que agora, de dentro do carro, ele vê a mãe acenar através de um portão de grades altas com lanças nas pontas que rasgam o céu trazendo a necessária segurança. Ele sente o mesmo carinho de vinte anos atrás, quando um garoto partia pra escola através de passos trôpegos de sono.
Um dia, numa conversa de quarto, a mãe lhe confessa que sente falta de algo que lhe era muito importante. Ele lhe pergunta o que é e ela responde na sua voz macia de velhinha:
"_ Minha visão não me ajuda mais. Não te vejo mais quando se despede, agora eu aceno para a direção que você se foi, mas não te vejo mais virar a esquina, aceno para uma névoa esbranquiçada."
A doença aos poucos levou-lhe boa parte da visão, e hoje com a visão diminuída, mesmo sem ver o filho, ainda continua reforçando o elo de carinho a distância. É mais do apenas um velho hábito, é a máxima exposição do carinho materno, que na sua forma incondicional e pura, continua a se manifestar no gesto de um aceno de mão, que agora é feito ao ar, apenas na confiança do amor por saber que do outro lado da névoa em seus olhos, outra mão acena em retorno.
O filho chorou nesse dia. Compreendeu todo o amor de uma vida numa fração de segundo, como se tivesse sido tocado pela luz das estrelas que tentaram lhe transmitir todo o conhecimento do universo num momento apenas. Sentiu-se solitário e violentado com a enxurrada de lembranças que desabaram numa fração minúscula de tempo. Ele chorou enquanto caminhava, não importando com as pessoas que cruzavam com ele em sentido contrário vendo um homem de olhos vermelhos que caminhava sem rumo, agora sabendo que aquele elo de amor foi tocado pelo tempo e que uma contagem regressiva foi iniciada rumo a um destino inexorável, daquele que sabemos que não escaparemos, para o qual todos nós caminhamos, e nesse caminho, teremos de nos despedir de pessoas que realmente nos foram importantes ao extremo, aos quais praticamente devemos nossas existências.
O filho, agora consciente, tem mais paciência do que nunca com as mazelas que a idade acaba trazendo, e com muito mais ternura pode retribuir tudo o que lhe foi concedido durante uma vida. Ele também faz o possível para que ela veja ainda tudo o que pode, tudo o que é mais bonito, nem que tenha de ser trazido próximo dos olhos, porém em segredo, ele ainda chora pra aliviar a alma.
O ano é 2008. Eu ainda choro.

Um comentário:

  1. Marcus..QUe sensibilidade...Amei...E tb chorei...Chorei...Porque senti o que sentistes...É realmente...vc tem razão..Precisamos dar mais valor a quem nos amou incondicionalmente...

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